Ennœa e o Alquimista de Coimbra


O alquimista coimbrense Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castello Branco foi o autor de Ennæa [Ennœa], ou Applicação do Entendimento sobre a Pedra Philosophal provada, e defendida com os mesmos argumentos com que os Reverendíssimos Padres Athanasio Kircher no seu Mundo Subterraneo, e Fr. Bento Hieronymo Feyjoo no seu Theatro Crítico, concedendo a possibilidade, negão, e impugnão a existencia deste raro e grande mysterio da Arte Magna (Lisboa Occidental, Oficina de Maurício Vicente d’Almeida, 1732 [1ª parte] e 1733[2ª parte]), livro este que constava na biblioteca do poeta e erudito em ciências esotéricas Fernando Pessoa, acérrimo seguidor da alquimia do Mestre coimbrense.

https://books.google.pt/books?id=ugKq4W-rKZ0C&pg=RA1-PP23&dq=ennaea&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwi0yYu9jd_WAhWqLMAKHXV3B6QQ6AEIKjAB#v=onepage&q=ennaea&f=false


                                                                                     Athanasius Kircher (1601-1680).

                                                                                 Benito Jerónimo Feijoo (1676-1764).

Anselmo Munhoz de Abreu, religioso, familiar do Santo Ofício, ingressou na Universidade de Coimbra, depois dos seus estudos de Latim, onde recebeu o doutoramento em Medicina sob o aplauso de todos os Mestres. Nascido na antiquíssima Vila de Soure, província da Beira do Bispado de Coimbra, filho do Dr. António "Cunhós" (Munhoz?) de Abreu, que se formou na Faculdade dos Sagrados Cânones, e de Simoa Godinha da Rosa, ele foi o médico do sétimo e penúltimo Duque de Aveiro, Gabriel de Lencastre Ponce de Léon Manrique de Lara Cardenas Girón y Aragón (1667-1745).



Para o escritor e bibliófilo Diogo Barbosa Machado (1682-1772), ele era «ornado de feliz memória, notícia das línguas mais polidas da Europa e não menos versado na lição dos Santos Padres, Sagrada Bíblia, disciplinas Matemáticas e mistérios ocultos da Química» (Bibliotheca Lusitana historica, critica e cronologia na qual se comprehende a noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo prezente: Offerecida à Augusta Magestade de D. João V nosso senhor, Lisboa Occidental, António Isidoro da Fonseca, 1741-1759, vol. 1, p. 178).

Todavia, ao contrário do que nos proclama o químico A.M. Amorim da Costa, o Dr. Anselmo Munhoz de Abreu não abandonou a prática de medicina depois de "três lustres imperfeitos"[1], mas sim que se diplomou com essa idade:

«Aquelle venturoso tempo, em que Vossa Illustrissima [o Illustrissimo Senhor D. Francisco de Menezes, conego da Santa Igreja Patriarchal e do Conselho de Sua Magestade, etc.] estudava e juntamente ensinava na Universidade de Coimbra, era a sua casa huma doutissima Aula, ou eruditissma Academia, em que só erão admittidos por Academicos, ou Candidatos os Varões illustres nas letras humanas, ou consummados nas Sciencias Divinas; e foy Vossa Illustrissima então servido dispensar comigo, para que sem tanta sabedoria podesse entrar naquella venturosa Athenas, tendo eu tão poucas letras, como annos, e tão pouca sciencia, como idade, para que em tres lustros, que então tinha imperfeitos, sahisse daquelle Collegio da Sapiencia com a sua erudição perfeito Academico, e com a sua grande Sabedoria hum consummado Philosopho; porque assim como os que bebião antigamente na Fonte Cabalina, ficavão Poetas laureados no Monte Parnaso, tambem os que gostavão o nectar da sciencia naquelle Oceano da Sabedoria, erão Philosophos graduados na Universidade de Coimbra.»[2]

Por conseguinte, o jovem Anselmo Munhoz de Abreu, formou-se quando ainda nem tinha 15 anos, ao frequentar as aulas na casa de D. Francisco de Menezes, condutário com privilégios de lente da Universidade de Coimbra, desde 21 de Outubro de 1633, tendo nascido no Porto nos inícios do séc. XVII (sabe-se que faleceu em 1680).

Enfim, o nosso alquimista jamais abandonou a prática de Medicina, até porque, como já se disse, ele era o médico do Duque de Aveiro Dom Gabriel de Lencastre (o ducado foi-lhe atribuído em 1720, tendo-lhe sido reconhecido o título em 1732, quando o Dr. Anselmo já era um homem idoso)!

Ademais, ao contrário do que alguns afirmam, o autor de Ennœa não foi discípulo de um Mestre desconhecido seu conterrâneo, como nos dá a entender o Prof. Manuel Gandra[3], [4]. Com efeito, o que o nosso alquimista português nos diz, pela boca do Peregrino, é que estudou com o maior Mestre de Filosofia, o próprio D. Francisco de Menezes, de quem foi discípulo, e a quem ofereceu a «Parte Primeira» do seu Ennœa. Além disso, ele também refere que tinha uma grande estima pelo padre Simão de Almeida, religioso da Companhia de Jesus que nasceu nos finais do séc. XVI, natural de Vila de Cano (Sousel, Portalegre), tendo falecido em Lisboa, na casa de provação da Cotovia, da Companhia de Jesus, a 8 de Março de 1666. Sendo este aluno da Casa da Sabedoria, os maiores mestres podiam aprender com ele e é, por isso, que o Dr. Anselmo Munhoz de Abreu nos diz que tinha mais apreço em ser seu discípulo do que do que do Grão que, na Universidade de Coimbra, tinha por Mestre:

«[…]  estudey Philosophia com o mayor Mestre desta Sciencia de entendidos; porque respondendo, e dissolvendo todas as duvidas alheyas, para os seus argumentos nunca houve reposta. Foy o terror das Aulas, o pasmo, e admiração dos Sabios. Pequeno elogio seria da consumada sciencia do grande Padre Simão de Almeida, filho da sempre esclarecida, e sapientissima Companhia de Jesus, exceder na Sabedoria aos Platões, e aos Aristoteles, que souberão pouco, e ignorarão muito, mas sendo alumno da Casa da Sabedoria, os mayores Mestres della podião ser discipulos seus; e mayor estimação fiz eu sempre deste glorioso nome de seu discipulo do que do grào, que na Universidade de Coimbra, se me deu de Mestre; e se com o trato de tão grande Philosopho tenho algum merecimento, participando delle a luz da Philosophia […][5]

Seja como for, convém não esquecer que o Dr. Anselmo foi um acérrimo seguidor da alquimia do filósofo português Francisco Soares Lusitano (Torres Vedras, 1605 - Juromenha, Évora, 19 de Janeiro de 1659), religioso da Companhia de Jesus, autor do Cursus Philosophici. Tomus tertius continens Universam Doctrinam in Libros Aristotelis De Generatione et Anima, 2 vols in-fol. (Coimbra, 1651) [6], obra que fazia parte da sua vasta biblioteca.

https://books.google.pt/books?id=5XZ4R0jAWgEC&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false


«[G]rande Filósofo, e mayor Theologo Francisco Soares da Sagrada Companhia de JESUS […][7]

Vejamos agora o que o próprio nos diz pela boca de Enodato (cousa declarada) :

«Dahi a alguns annos passey de Italia para França, e de França para Portugal, aonde tive a honra de beijar as mãos ao Grão Principe de Toscana, hoje Cosmo III e na Cidade de Lisboa praticando com elle sobre a possibilidade da Pedra Philosophal […][8]

A visita de Cosme III de Médicis, Grão-Duque da Toscânia, ao Reino de Portugal data de 9 de Janeiro de 1669.

                                                                                            Cosme III de Médicis.

Curiosamente, desde esse evento até à publicação do seu livro, entre 1732-1733, vão mais de sessenta anos!

Seja como for, as suas viagens são anteriores a 1669 e é perfeitamente plausível que ele tenha nascido na segunda metade do séc. XVII, como nos indica o nosso amigo belga Philippe Buchelot, alias Filostène júnior[9], mais precisamente, por volta de 1650. Assim, ele ter-se-ia formado em meados de 1665 (entre os 14 e 15 anos) e viajado a seguir por Itália e por França durante, pelo menos, uns três anos…

Ainda segundo o nosso amigo, entre os anos de 1716 e 1728, o Dr. Anselmo Munhoz de Abreu também teria sido um guardião da F.C.H. (Fraternidade dos Cavaleiros de Heliópolis)[10], durante parte da 11ª e da 12ª enéadas. Aliás, de acordo com Filostène, a sua estadia em França dever-se-ia muito simplesmente à sua ligação com a dita Fraternidade.

Temos de convir que a sua existência foi extraordinariamente longa «[…]  e parece que ainda vivia no anno de 1759»[11] (?). Se assim for, então ele teria sido mais que centenário, o que muitos, decerto, contestarão!?!

O escritor, matemático, alquimista e professor da Universidade de Salamanca Diego de Torres Villarroel (1694-1770), no seu El Ermitaño y Torres – Conversaciones Physico-medicas y Chimicas, aventura curiosa en que se trata de la piedra philosophal (Sevilha, López de Haro, 1726), refere-se a um amigo português que conheceu em Coimbra, com quem esteve em contacto durante cerca de quatro meses e a quem viu preparar a Pedra Filosofal a partir do Mercúrio mineral sem mescla de outro corpo[12]. Sem dúvida nenhuma que se trata do nosso alquimista.

                                                                                        Diego de Torres Villarroel.

Para Amorim da Costa, o alquimista também possuía uma vasta biblioteca e um laboratório na sua terra natal  (Soure)[13], onde se entregava regularmente à prática alquímica. Todavia, o alquimista menciona apenas a Livraria  (biblioteca)[14], [15] que possuía na sua casa, sendo que esta se localizava na fazenda no Casal dos Reis, da Povoação que os naturais chamam de Aldeia dos Anjos.

Seja como for, percebe-se claramente pela sua obra que ele se entregava à alquimia operativa num qualquer laboratório.

____________________

[1] http://www.triplov.com/coloquio_06/amorim_da_costa/Enodato/introducao.htm, A.M. Amorim da Costa, «O Sonho Alquímico de Enodato e o Perfil do Filósofo Natural, 1. Introdução».
[2] Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco, Ennœa, ou a Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, «Parte Primeira», pp. 3-4.
[3] http://www.academia.edu/13050630/Biblioteca_do_Pal%C3%A1cio_ Nacional_de_ Mafra_cosmologia_e_mnemotecnia, Manuel J. Gandra, A Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, Colecção Mafra de bolso, «Subsídios para o catálogo da tratadística alquímica antiga (até 1800), presente no acervo da Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra», p. 150.
[4] http://www.cesdies.net/hermetica/fsp/Bibliografia%20Arcana%20Artis %20Trata dos%20e%20fontes%20impressas%201.pdf, Manuel J. Gandra, «Subsídios para a Bibliografia crítica das fontes e estudos respeitando à Alquimia e disciplinas conexas em Portugal, A. Arcana Artis – Tratadística e Fontes impressas, 1. Edições realizadas em Portugal ou tendo por objecto tratados e fontes nacionais».
[5] Ennœa, ou a Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, «Dialogo Terceiro, Do Mercurio Philosophico, e da sua digestão, VIII. Sonho Enigmatico», p. 73.
[6] Não confundir com o filósofo espanhol Francisco Suárez (Granada, 5 de Janeiro de 1548 - Lisboa, 25 de Setembro de 1617), também ele religioso da Companhia de Jesus e autor de De generatione et corruptione (1575).
[7] Ennœa, ou a Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, «Prologo Galeato, I», p. 5.
[8] Ibid., «Dialogo Terceiro, Do Mercurio Philosophico, e da sua digestão, X. Metamorfoses do Chumbo em Prata», p. 88.
[9] Filostène, Fulcanelli exhumé, La Pierre Philosophale éditions, Hyères, 2011, «Les Frères Chevaliers d’Héliopolis autrefois nommés Frères Compagnons d’Hiérosolym – Les ennéades les plus énigmatiques: la première moitié du XVIIIème siècle. Philothaume et l’entourage de Louis XV», p. 338.
[10] Ibid., p. 338.
[11] Innocencio Francisco da Silva, Brito Aranha, Jose Joaquim Gomez de Brito, Ernesto Soares, Alvaro Neves, Martinho Fonseca, Diccionario bibliographico portuguez : A-Z, Vol 1-2, Imprensa Nacional, 1858, «Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco», p. 75.
[12] Diego de Torres de Villarroel, El Ermitaño y Torres – Conversaciones Físico-Médicas y Chimicas, aventura curiosa en que se trata de la piedra philosophal, Officina de Don Benito Cano, 1789, «Noche Segunda. De la Piedra Filosofal», pp. 81-82.
[13] http://www.triplov.com/coloquio_06/amorim_da_costa/Enodato/introducao.htm, de A.M. Amorim da Costa, «O Sonho Alquímico de Enodato e o Perfil do Filósofo Natural, 1. Introdução».
[14] Ennœa, ou a Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, «Dialogo Primeiro, Da origem, antiguidade, e excellencia da Arte Magna; e dos seus dois mayores mysterios, que são a Chrysopeia, a Argyropeia, com que os Hermeticos evitão todas as enfermidades, curão todas as doenças, dilatão muito tempo as vidas e transformam em Prata, e Ouro todos os Metaes, II. Da origem, etymologia, e antiguidade da Chymica», p. 19.
[15] Ibid., «Dialogo Segundo, Das qualidades, e virtudes do Philosopho Hermetico, e da materia da Chrysopeia, III. Da preparação da Pedra Philosophal», pp. 29-30.

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